domingo, 27 de dezembro de 2009

A Pressão por Ser Ninguém

No mundo há uma clara distinção entre duas espécies de humanos. Os seres Alguém e os seres Ninguém. Sujeitas aos novos meios de divulgação e transmissão velocíssimos, as informações nos cutucam várias vezes por dia, relembrando a distinção inexcedível entre essas duas categorias.
Os seres Alguém são, por diversas razões ou circunstancias, pessoas reconhecidas pela comunidade particular ou pela sociedade mundo, nem sempre merecidamente, mas sem exceção constituem uma camada que desfruta de privilégios consideráveis, quando cotejados com seus prejuízos correspondentes.
Não resta duvida de que, ao ser Alguém, é demandada paciência e parcimônia quanto a sua exposição midiática, por vezes fatigante e frustrante. Todavia, esses entraves são preferíveis quando se lhes é oferecida a alternativa, isto é, do ser Ninguém.
Ao ser Ninguém, toda a sua glória particular, sua vida difícil ou fácil, suas conquistas, não transbordam além de seu círculo rotineiro de amizades ou do parentesco; é-lhe vedado o reconhecimento amplo, e personalidades distintas lidam com essa restrição, com essa “anonimidade”, de formas bem ou mal comportadas.
O ser Alguém ilustra capas de revistas, tem seu nome citado por dignitários, dá autógrafos, tira fotos, é o centro da atenção, cria neologismos, tem o poder de ditar tendências, criá-las ou destruí-las; essa categoria é, pode-se dizer, a protagonista na sociedade mundo; aos outros restam o papel coadjuvante, quando lhes advém a sorte.
Esses dois grupos se constituem em entidades psíquicas mesmo que inconscientemente. E é a pressão psíquica forjada nas nossas percepções provenientes da comparação entre as categorias que influi com grande impacto nas projeções coletivas e individuais de futuro e bem-estar.
De modo sub-reptício, ao menos de um ponto de vista ligeiro e superficial, essa lógica se instaurou na nossa sociedade contemporânea e parece impossível dissecar a origem desse pensamento, que levou a uma espécie de círculo auto-sustentado de promoção e reprovação.
Todo o grupo dos Seres Alguém politicamente sustenta sua posição 'notável' frente às demais, e é, por uma espécie de mecanismo perverso, correspondida pelos alternos, seres Ninguém, que reconhecem sua inferioridade, legitimando a posição dos primeiros.
A pressão psíquica que recai sobre o grupo incógnito leva hodiernamente, aos principais distúrbios psicopatológicos diagnosticados pelos profissionais dessa área. No que nos interessa, vale ressaltar a falta de lógica desse caminho. A dualidade dessa categorização (claramente informal e não-reconhecida) entre duas espécies de seres levou a uma sobrecarga sob um dos grupos, que é então diagnosticada como depressão e todas as doenças derivadas da mesma síndrome do Ser Ninguém. Somado ao tratamento médico, as recomendações psicológicas são sempre pautadas na contramão do que vemos no cotidiano. Como convencer um depressivo de que ser Ninguém é motivo suficiente para viver, quando todos os cartazes e pôsteres brilham com o sorriso garboso dos Seres Alguém, enquanto estes últimos se reúnem em cúpulas privilegiadas e decidem a sorte dos demais, enquanto se é apenas um peão em um jogo que privilegia os reis?
A psicologia é um paliativo para a resolução de uma situação problemática que decorre de motivos muito alem de seus domínios. Enquanto a sociedade reforçar a clivagem entre as duas espécies de homo contemporâneos, os psicólogos terão muitos clientes e poucas soluções.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Métodical

O restaurante como sempre, tinha a mesma oferta de comida abundante por um preço acessivel. As mesas usualmente estavam cheias, e vez ou outra ele tinha que subir ao andar segundo, para encontrar um lugar vago. Depois d'escolhida-a-dedo sua refeição, recebeu os cumprimentos da moça do caixa, sempre piscando aqueles dois olhos azuis com toda a força que tinha - e dela amealhou seu diário e inexcedível suco de laranja.
Muitas conversas gravitando em volta. Poucos olhares, muitas bocas mastigando e outras, inconvenientes galardeando.
Algumas dessas bocas teriam dito o que acabara de dizer? Teriam, os donos daquelas mãos todas que tilintavam talheres tipicamente, feito o que havia realizado ha pouco? Onde estariam aqueles, cujos olhares agora repousavam em suas seguras vale-refeições, há quinze minutos atrás?
Com toda a certeza, a grande maioria estivera vivendo mais um dia de suas vidas hodiernas. Alguns poucos, quem sabe, tenham se aproximado, de um evento tão primordial e crepuscular em suas vidas, quanto o que lhe tinha ocorrido.

Voltou para casa. Não pode desviar o olhar da árvore, adentrando sua sala. Lá estava, o imenso desserviço que lhe fora impingido pelo favor, aquele favor que lhe custara tanto. Como se arrependia! Se pudesse voltar ao tempo passado diria a ela mil vezes não. Mas já havia realizado o intento sabendo das suas consequencias. Por isso disse à vizinha e a seus lábios (dignos) que amorteciam cada palavra pronunciada que sim, que esperaria por seu conjuge, namorado, ou parceiro à revelia de qualquer síndrome moderna de comprometimento.
Não raciocinava e nem mesmo encontrava lógica no que o levou a acatar com severa e estrita abnegação um pedido tão simples e inocente de sua parceira de andar. Trançava nos corredores e na escada com ela há três anos e quatro meses, mas tropeçaram em pouco mais de cinco frases desconexas durante todo esse período.
Agora, enxergava como tinha sido infanto-juvenil. Qualquer tentativa de aproximação não seria feita sendo cooptado para eventos que incluissem o supracitado sujeito de pouca ou nenhuma estirpe. Vinha sempre de moto: quando chovia e estava molhado, molhava o chão e pouco se importava; falava alto e o cumprimentava como se fossem antiquados conhecidos. Um grande imbecil. Havia, de qualquer modo, concordado em esperá-lo para entregar-lhe certa encomenda, uma vez que a vizinha precisava - correndo - correr até o correio, ou a carta de natal não chegaria à casa de sua avó - mora sozinha em Maria da Fé, tem uma pequena venda de suas rendas que garante um sustento, e claro, tem também a pensão do avô, mas continua com diabetes e a artrose que lhe tira qualquer admiração pelo hoje ou confiança no amanhã - fato obviamente mais importante, comprovado que foi após a exposição, do que o evento entrecortado em sua agenda pela entrega da roupa suja na lavanderia e o almoço no restaurante.

Enfim, abdicou de sua programação, para dar ensejo aos anseios da vetusta vizinha. Esperou no sofá de plástico que imitava couro, e que no calor, grudava o corpo com o próprio suor - coisa medonha - mas que incorporava o espírito reinante naquela residência, o do desleixo. Não compreendia como podia, morando sozinha, comprar um pacote de seis pães de hamburgueres, quatro dos quais agora jaziam na mesa, certamente herdeira de um jantar pouco nutritivo da noite anterior. Olhava para as roupas - numa cena pouco crível - fustigadas no chão, como tapetes! Não entendia como a falta de asseio e organização condiziam com a beleza e a aura atraente de sua correlata residencial. Esperou os dez minutos acertados. Não chegou. Quinze. Não. Aos quase-vinte tocou a campainha, tarde demais para que conseguisse ainda encaixar o que tinha programado fazer naquele horário, mas nem tão tarde para perder a paciência.
Se cumprimentaram com a infame cordialidade costumeira, e logo entregou a ele o pacote. Não esperou por reação alguma, queria ver se ainda conseguia pegar a loja aberta, o vendedor havia dito que se chegasse antes do almoço conseguiria comprá-la. Mas o sujeito não estava disposto a cooperar. Interpelou. Perguntou. O que fazia dentro da casa dela? Pouco tempo para explicações, mas não houve trégua. Pacientemente lhe re-contou todo o processo que já se mostrava odioso. O homem finalmente entendeu e agradeçeu pelo favor.

Quando ia embora, um ataque nervoso foi lhe apercebido nas entranhas. Teve de levantar questão: o que estava no pacote?

- Dois hambúrgueres. Ela fez minha marmita.

Correu com os olhos furiosamente consternados, sabia que não chegaria à loja antes de "Fechada para Almoço". Sabendo já do futuro, nem deveria ter se dado ao trabalho. Mais uma vez, agiu sem o que sempre valorizara, o raciocinio logico perfeito e irredutivel. Correu, correu e narisgou a porta. Havia perdido a chance. Não pode comprar. Por causa de dois hambúrgueres da desleixada vizinha que objetivavam tão somente alimentar aquele capacete espúrio que continha um homenzinho dentro. Voltou à residência. Ela tinha retornado dos correios, e se toque-tocavam na varanda. Gritou. Chingou. Levantou falsos testemunhos e criou vocabulários para atingir, com toda a agrura que sentia, os colhões do sujeito e a honra da vizinha. Conseguiu o que esperava, porque aparentemente os dois ficaram perplexamente petrificados, sem reação, na varanda.

De que adiantava. Havia traído sua rotina. Havia deixado de levar a cabo o que harmoniosamente acontecia há uma década de laborioso zelo. Perdeu a hora do almoço, e perdeu um compromisso agendado, que estava ali! Estava escrito na agenda!

Agora sentia uma sensação de decepção consigo mesmo, enquanto sentava em sua cadeira, mirando a árvore de natal. Era impossível não notar. Tinha deixado apalavrado com o caixa, chegaria antes do almoço para comprá-la, doutra feita, poderia vendê-la para a senhora que havia se quiexado dos altos preços nas concorrentes. Tinha certeza de que chegaria antes do almoço e no pós-almoço estaria com ela ali, enfeitando sua árvore. Agora teria que passar o natal com uma árvore sem estrela na ponta. Sua vizinha e sua falta de lógica lhe custaram muito caro.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Jair, 10 da xurupita....

Faltou pouco. A bola resvalou do lado da trave e saiu pela linha de fundo. Na saída do campo, justificou, argumentando que a única coisa que faltou foi sorte.

Já na sua casa, deitado na cama, o olhar perdido na única cor, bege, do teto e a tv ligada no programa de esportes. O gol do tudo ou nada, crucial para o desfecho de um campeonato inteiro. Trocou de canal, preferiu ver noticias sobre as enchentes no Norte. Levantou e tomou um trago de cachaça. Lembrou dos tempos distantes. Não havia enchentes no Norte. Quis refrescar a cabeça e não conseguiu, pensou em ir pra zona, mas não era dia.

Um telefone tocou, do outro lado da linha uma voz áspera, como se pedindo esmolas perto de um restaurante.

- Jair, vem pro treino rapaz, precisamos de você para o próximo jogo.

Seu Antonio, roupeiro do time há mais de vinte anos, era mais que um psicólogo para o grupo. Entendia cada problema dos jogadores côo se já estivsse vivido aquilo tudo.

De fato no próximo jogo Jair poderia ser decisivo, fazer os gols que tirariam a vantagem do adversário.

Treinou, mais treinou pouco. Quis sentir a atmosfera da partida. Na véspera do jogo, ficou em casa. Comeu pouco, bebeu muita água e se concentrou. A tv não ligava, queria ficar ao máximo no seu mundo.

Ao chegar no estadio se sentiu especial, como se estivesse sido escolhido para ser o protagonista dessa historia que contava com mais de 80 mil pessoas.

O apito agudo rompeu o silencio interno que isolava o som da arquibancada. Era o momento.

Jogo duro. Jair joga, Junior se joga, o juiz deixa jogar. Jair com a bola, que rola para Roque, que pensa no toque, mas prefere passar. Passa no pé de Baltazar, que olha pro lado e perde pra Valdo, que passa de um, passa de dois, olha pro lado, tabela, recebe adiantado, passa mais um, é trombado e quando esta pra cair, Jair, Jair é o nome do gol, num lance de puro oportunismo, com o lado de dentro do pé, sacode a rede e sai para comemorar. Aqueles 5 segundos parecem uma eternidade. Tudo em câmera lenta, o som equilibrado e musical da torcida como se fosse um coro, a palma da mão no peito, forte, cheio de si.

Tem dias que a sorte não acompanha, mas para algumas pessoas ela só aparece na hora certa.

F. Goes, publicitário, malandro e vagal nas horas vagas