sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Revoluções Intestinas

de tão frio estereótipo padeço eu
que sinto sentimentos indo e vindo
catalogados como livros numa estante
por cor, tamanho e semblante
e posso ao menor pensamento pensar
em acessar ou guardar ou calar
aquela pequena faísca acessa
pelo meu subconsciente consciente
agita todo o sistema
ilumina todo o problema
para então
ser extirpada pela razão
racional que me diz, irônica, acenando com a mão
não

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A Inversão da Ficção

por Victo José da Silva Neto

A ficção científica evolui com uma aceleração diferente das ciências humanas. Entretanto, seu objeto de representação é sempre a fronteira, em sua época, ainda incógnita e desconhecida da nossa razão. Encontrei, por acaso, uma tendência, nas obras e principalmente nos filmes de ficção, ao profundo pessimismo com o futuro da humanidade e do planeta Terra. O ponto interessante é que houve uma reversão dos papéis, quando comparamos as obras atuais com as de alguns anos atrás.
Podemos buscar mais fundo ainda, mas 1953 já é tempo suficiente para demonstrar, com War of the Worlds, de H G Wells, como a temática da invasão alienígena representava um dos temas mais em voga no cinema de massa. A corrida espacial apenas começava, a NASA ainda não existia, e tudo que circulava sobre o tema entre o grosso da população era baseado em especulação e quase nada em ciência.
Em quase 60 anos, outros grandes ícones da produção cinematográfica marcaram época, cada geração teve seu épico de destruição da Terra por seres alienigenas. O meu, por exemplo, foi Independence Day. Na época, 1996, eu nem imaginava a propaganda norte-americana contida no filme, o protagonismo em alguma medida arrogante dos Estados Unidos no futuro da humanidade. Eu me divertia mesmo era com os aliens e as batalhas entre as naves alienigenas e os caças.
Talvez seja essa a lembrança que me faz refletir ao assitir Avatar. Há 14 anos atrás, nas telas dos cinemas nós estavamos sendo invadidos. Hoje nós somos retratados como os invasores. Os humanos são os impiedosos seres agressivos que graças a interesses superiores desprezam a vida e a comunidade do planeta alheio. E Avatar foi só o primeiro. Pois Pandorum deve estreiar no final do mês aqui no Brasil, e Batalha por T.E.R.A. no final de Maio. De um modo ou outro, eles devem reproduzir, sem o mesmo sucesso estrondoso, a temática de Avatar.
O nosso maior medo deixou de ser a invasão de seres desconhecidos. Hoje temos a consciência, de que nós mesmos podemos destruir nosso planeta; falta uma dose de auto-conhecimento? Ou uma dosagem menor de hipocrisia, quando discursamos sobre sustentabilidade mas continuamos fazendo tudo do mesmo jeito?
De qualquer modo a ficção já fez e continuará fazendo sua contribuição para retratar as fronteiras desconhecidas de nossa época. E realmente, um bando de et's cabeçudos parece mais inofensivo do que uma corporação capitalista em épocas de intensa concorrência.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O Futebol Pragmático versus o Futebol Cabalístico

por Victo José da Silva Neto

Santos e São Paulo fizeram um grande jogo. Talvez esse seja o mais interessante clássico do futebol paulista em anos. Justificarei. O São Paulo possui um plantel cheio de opções de meio campo, mas se sobram nomes, faltam qualidades destacadas. Seu sistema de jogo é europeu, apesar de ser o 3-5-2 mais próximo da perfeição que o futebol brasileiro já viu, com certeza seu espécime primordial na ultima década. O toque de bola, a solidez defensiva, os contra-ataques pelos pontas (Dagoberto, ou J. Wagner as vezes) (tendência também identificada nos clubes europeus - vide Manchester/Barça), o futebol sem erros, de qualidade tática suprema aliada à qualificação técnica, mas que também deixa de ser um atraente espetáculo, pois prima pela segurança e o passe certo, ao drible seco, à ginga e ao improviso.
Esses três últimos atributos pertencem ao jovial time do Santos. Mantendo a tradição de revelar grandes jovens com o que o futebol carrega de mais místico, ou seja, a arte de improvisar, que nada mais é que jogar naturalmente, como se jogam peladas, adaptando o drible à situação: a inventividade sobrepõe-se ao modelo pétreo, a movimentação é muito mais livre; a leveza e a velocidade atordoam os marcadores adversários.
Mas o Santos é mais do que isso. Pois reuniu gerações distintas dentro de um mesmo plantel. Conseguiu aliar a sofisticação extremamente simples que é o futebol arte - que se aprende genetica-hereditariamente no Brasil, tanto através de incentivos familiares quanto graças à uma tradição socio-cultural de grandes jogadores, da valorização do driblador como o verdadeiro boleiro - com a segurança de um meio campo respaldado por uma zaga confiável. Giovanni, Léo, Robinho, Ganso e Neymar. Ícones. Boleiros. Com a exceção de Ganso, que é de uma categoria ainda mais exclusiva. É o jogador que prevê, antecede a reação adversária aos seus próprios movimentos, e por isso joga fácil, tão fácil que parece não fazer esforço algum para enfiar bolas primorosas, puxar marcação ou abrir espaços impensáveis. É o jogador que, se não quiser, não perde a bola. Que sabe de ante-mão quando uma jogada é factível, quando deve passar, quando deve chutar, o resultado de cada ação já previamente calculado por uma espécie de análise imediata automática, que ocorre subconscientemente, elevando os jogadores que tem essa incrível capacidade crítica e de pensamento veloz, quando fundidos com uma habilidade e intimidade com a bola, à um nível superior. Esse é o jogador místico.
Foi para ver esse clássico, que de bom grado perdi o jogo do meu time, ou melhor, do juntado de onze que para minha indignação hoje compõe o alviverde. Torci para o Santos, e não esperava o segundo gol santista. Isso porque o São Paulo é um time extremamente competente. Dificílimo de ser batido. Já são quase seis anos jogando da mesma forma. E como quase só o São Paulo conseguiu efetivamente implantar a filosofia européia de jogo no Brasil, foram seis anos com um diferencial que o elevaram a categoria de papa-títulos. Como eu dizia, torcia para o Santos, muito pelo estilo de jogo deste, ousado e cativante. Robinho não deixou por menos. Seu gol é a síntese do jogo, e de um antagonismo que fará esse ano um dos mais interessantes no futebol nacional. O futebol pragmático sucumbiu, pela primeira vez em anos, ao geneticamente predisposto futebol cabalístico brasileiro.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A capital da ZICA.

Ainda em 2009 o Metallica anunciou que viria ao Brasil em alguns meses. Faziam 11 anos que a banda não dava o ar da graça, e nenhum fã mantinha esperanças após o cancelamento do show de 2003. A banda já era um clássico em minha família desde meados do Diablo II e meu irmão mais velho respondeu a minha pergunta, "Vamos ao show?", com um alto e claro, "Sim, e de VIP!". Era perfeito. O primeiro do Metallica, meu primeiro no Morumbi, e a primeira vez indo na ala VIP. Era perfeito...

Como muitos, conseguimos ingressos antecipados através da Ticket Master, um claro caso de monopólio na venda de bilhetes. Eles demoraram um bocado a chegar, o que nos deixou suspeitos e apreensivos até a hora em que os tivemos em nossas mãos. Agora era só esperar.

O grande dia foi agitado. Era 30 de Janeiro, um ensolarado sábado. Enrolamos muito pra sair de São José. Era também o dia do casamento da irmã da Lia, namorada do meu irmão, e optar ir ao show ao invés de fazer as honras da família do sogrão foi com certeza uma escolha difícil pra ele. O Metallica entraria no palco às 21:30 e às 18:00, quando estávamos deixando a cidade rumo à capital, recebemos uma notícia de merda. Os ingressos VIP que muitos haviam comprado pela Ticket Master estavam errados. Os ingressos meia VIP e os da pista inteira custavam o mesmo preço, e todos receberam seus ingressos trocados. Screw this!

Tentamos esfriar a cabeça e botar os pés na estrada. Dirigi até Sampa em um misto de ansiedade e decepção, vestido com a minha recente adquirida camisa tricolor. Oras, se o show aconteceria no estádio do meu querido clube por que não fazer como os muitos palmeirenses trajados de alvi-verde durante o bom show do Iron Maiden no palestra itália? Errado!

Depois de ficar um tanto quanto perdido nas proximidades do Morumbi, encontramos a casa de uma amiga em que iríamos deixar nosso carro. Era um condomínio bacana, de extremo contraste ao cenário urbano e que não ficava muito longe do show. Longe o bastante da muvuca. O sorriso em nossos rostos já traziam os bons ares de missão cumprida. Depois de uma ou duas espreguiçadas, pegamos tudo o que precisávamos para o show e seguimos as pressas.

Graças ao horário de verão ficou claro que haviam pessoas demais na frente do Cícero Pompeu. A fila era ridícula, dava uma completa volta no estádio. Aceitamos o fato e fomos ao final da fila para a entrada da pista. Portão 02. Maldito portão 02.

Esperamos algum tempo até chegarmos a merecida entrada. Tudo estava sussa até acontecer o maldito momento desequilíbrio que toda história precisa para ser boa. Um dos seguranças me parou antes mesmo de chegar à revista me alertando que não poderia entrar vestido com a camisa do São Paulo. Haha, bela piada. Os argumentos giravam em torno de chances de linchamento e agressão fanática de torcidas rivais. Uma responsável pela administração veio até a discussão para dar mais força a imposição do segurança. A polícia, responsável pela revista nunca iria permitir que eu entrasse com aquela camisa. As opções não eram muitas. Ou jogava a camisa fora ou ia embora para todo sempre. Foi então que fiz o básico, fiquei puto. Estava FMP(Fudido e Mal Pago), como diria um amigo meu. Era ridículo, dentro do templo sagrado do meu futebol, eu não podia erguer o estandarte ou seria esfaqueado... Eu estava a jantar com o inimigo.

Saímos do estádio, ambos ainda nervosos. Meu irmão mais uma vez foi o tal do herói. Pegou minha camisa e colocou por dentro da calça, vesti uma capa de chuva e tomamos doses da maldita coragem. Aproveitamos uma confusão semelhante com um outro grupo torcedor do esporte nacional e os memos seguranças e corremos para a linha polícial responsável pela revista. Nervosos o bastante para sermos pegos, fomos revistados. Meu irmão trocou palavras com um dos policiais e passou. Na minha vez pediram para abrir a capa de chuva, para checar se eu escondia a camisa. "Cadê a camisa?". Com um embrulho na barriga, e uma careta no rosto as únicas palavras que me saíram foram. "No carro."

Puta que pariu, a sensação de passar pelas catracas era semelhante a chegar ao "pique" quando criança. Estávamos salvos. Meu estômago doía e eu ainda estava puto. Meu irmão era o herói e eu não conseguia sequer me livrar da fúria. Mais alguns passos e chegamos à rampa para entrar no campo. Era lindo. As luzes estavam acesas as arquibancadas lotadas, o campo cheio. Certa vez um amigo me disse que só o preço do sistema de iluminação do Morumbi já pagava o Palestra Itália. Foi apenas exagero de um palmeirense brincalhão, mas aquilo era lindo. Aquela visão era sem a menor sombra de dúvida as nossas batatas e nós os campeões. Eu quase pude sentir lágrimas no meu rosto ao ver a casa cheia. No meio da galera, olhando as arquibancadas lotadas eu pude sentir o gostinho de ser um jogador de futebol, e entendi por que as pessoas erram penaltis de vez em quando.

As luzes apagaram, o Metallica entrou, deu seu melhor e partiu. O melhor show de todos, no TOP 10 das maiores zicas de todas. Foi demais.

Quebrados, derrotados e de fato felizes, fomos embora. Sedentos por um simples suco de laranja jantamos uma pizza do Habib's, tomei um banho e capotei. No dia seguinte fui subitamente acordado pelo celular. Eram quase 14h, o número era estranho. A voz era familiar, mas eu ainda estava doido. Era um convite para almoçar. Arrumei minhas coisas, as coisas que havia bagunçado e fui me despedir do meu irmão. Ele já estava lendo as notícias. "Metallica faz o maior show de rock que São Paulo já viu.". Yeah! Vazei logo depois de um abraço, e do comum acordo de que agora só faltavam algumas bandas para assistirmos ao vivo.

Fui embora para Barra Funda, vestindo as poucas roupas limpas que ainda me restavam. Entre elas, o manto tricolor. Zica é zica e eu já devia estar acostumado. Fui parado no metrô por um funcionário à paisana. Disse que hoje era domingo, dia de clássico no palestra e que seria prudente de minha parte me livrar as pressas daquela camisa, antes que fosse linchado. Screw this 2...

Eu havia me esquecido completamente que era dia de jogo. Certo que o campeonato paulista não é tudo isso, e que tanto Corinthians quanto Palmeiras estavam com os times desfalcados e remendados. Mas os torcedores não tão nem ai para o futebol. O jogo é só um pretexto. Eu estava decepcionado com a maldita ironia. Eu não podia usar aquela camisa sem ser um maldito alvo.

Cheguei à Barra Funda, que fica há poucos metros do Estádio Palmeirense, e estava parado, subindo pela escada rolante, certo de que todos aqueles olhares curiosos que me seguiam me alertavam sobre e encrenca do fanatismo futebolesco de domingo. Foi quando uma pequena mocinha dos cabelos cacheados que subia as escadas normais mais rápido do que suas pernas deixavam chegou bem perto ao meu lado e me disse: "Que camisa linda."

A inocência e sinceridade daquela garotinha me arrancou um sorriso do rosto e me deu a motivação para escrever essa budega. Parecia que a garotinha sabia de tudo o que havia acontecido, e que eu estava prestes a me encontrar com uma pessoa que eu adorava. Era como se dissesse, "Fica frio, você já ganhou.". Eu acabei vestindo uma outra camisa amassada que tinha na mochila e desfrutado de um ótimo domingo em grande companhia. Foi um belo fim de semana que me lembrou que logo acabam minhas férias, e que volto a minha vida na capital das boas histórias.


quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

É...

Jorge Luis Braga era supervisor nacional da Timpu adornos metálicos, grande multinacional mexicana do ramo dos utensílios domésticos. Sua sólida carreira remetia há 15 anos, quando havia entrado na empresa graças ao padrasto de seu primo, homem de vida misteriosa, mas que havia lhe indicado para uma vaga de administrativo. Depois de trabalhar por um ano no almoxarifado, foi promovido a consultor de vendas. Dada sua ânsia pelo trabalho, sua compulsividade em se mostrar excessivamente como o melhor e mais empenhado, conseguiu, um pouco por mérito um pouco por exaustão, galgar a cada dois ou três anos uma promoção.
No meio tempo, Jorge Luis Braga se esqueceu de viver. Logo que pôde, se mudou da casa dos pais e comprou um pequeno apartamento na Casa Verde. Lá, entre vizinhos mal-encarados e engarrafamentos a cada dia mais desafiadores, ficou por pouco mais de quatro meses. O local não tinha grandes atrativos, e o deslumbramento que o dinheiro causou ao pobre Jorge Luis Braga o impedia de viver um padrão regular de vida, na média dos seus rendimentos. Endividou-se, trocou financiamentos por carros, hipotecou apostas e apostou suas hipotecas. Seus pais ajudaram. Conseguiu equilibrar suas contas. Namorou por três meses com uma garota que trabalhava no Pari, eles haviam se conhecido na sala de espera de um analista. Sim, porque ele fazia análise, obrigado pelos pais que não se conformavam com sua falta de vida social e sua aparente indiferença quanto à relacionamentos estáveis. A salvação monetária de suas dívidas teve como contrapartida a freqüência no consultório. Essa situação durou pouco tempo, e Jorge Luis Braga percebeu que não havia nada de errado com ele. Diferente dos outros, ele entendera e assimilara a lógica do mundo de modo a aperfeiçoar seu tempo, suas relações, suas conversas e o tempo de suas refeições. Não fazia nada de improviso. Tinha o dia programado ao desvelar do lençol pela manhã.
O namoro foi um desvio que ele mais tarde viu como uma sub-optimização de seus recursos, uma capacidade produtiva ociosa de seu corpo, seu templo, seu tempo. Para recuperar o irrecuperável, lançou-se a uma cruzada impiedosa, jurando que se tornaria muito, muito rico. Depois de alguns anos, trabalhando sem tirar férias, assessorado por alguns dos melhores corretores financeiros da cidade de São Paulo, ele conseguiu. Tinha acumulado um grande capital, e reaplicava em títulos e fundos de rendimento seguro e estável. Aversão ao risco? Jorge Luis Braga não mencionava a palavra risco. Afinal, quem tem a vida planejada está imune ao mesmo?

O pai de Jorge morreu. O estalo mental agiu rápido. Olhou-se no espelho emoldurado por lindos ornatos metálicos comprados a preços especiais da Timpu adornos metálicos, e viu sua figura, lamentável lamentável, tinha chegado do enterro de seu pai, que tinha sido no cemitério do Araçá, cujo túmulo havia custado mais dinheiro do que cabia na sua carteira mas haveria de valer a pena.

Não tinha mais tempo a perder. No dia seguinte, em plena segunda-feira, tirou seu carro da garagem, um belo esportivo preto comprado em uma ampla loja no jardim paulista, desligou seu blackberry mas, maquinalmente, desceu de terno. Seu cabelo ralo espetado parecia uma pequena árvore de natal artificial maltratada, se bem que era preto, e não verde. Ele percebeu que estava mal arrumado, amofinado, mas aquilo lhe encheu de uma alegria, uma excitação, um tesão que não encontrava precedentes em sua memória. Não tinha idéia do que fazer, e isso lhe deixava irracional ao ponto de ignorar regras básicas da vida em comunidade. Não vou continuar descrevendo todas as imbecilidades que Jorge Luis Braga cometeu no seu momento de epifania; vou, portanto, logo à parte mais interessante da história, exatamente ao ponto no qual outro personagem aparece.

Jorge dirigiu sem rumo até uma praça dentre as mil praças da cidade e parou. Não tinha objetivo. Parou o carro e desceu. Não trancou. Andou até o centro da praça. Olhou para o alto e viu o Sol [o Sol de São Paulo, não sei se vocês sabem, já as sete horas da manhã se parece com o Sol do litoral à pino, te queima o rosto]. Pessoas cotidianas andavam pela praça. Não tinha vento. Havia um bar. Sempre há um bar. Nos bancos, pessoas sentadas. Em um deles, um velhinho com o cabelo desgrenhado, branquíssimo e ralo no cocuruto, escorando uma caixa (com a enorme pança) que continha diversos tipos de balas, chicletes, doces, cigarrinhos de chocolate e até mesmo pãezinhos de mel. O velho era feio. Jorge Luis reparou nisso, e como agia naquele momento no avesso do que considerava normal, sentou-se ao lado do ancião e disse que ele comeria um pão de mel. O velho lhe vendeu. Disse não saber o que estava fazendo ali, e o velho resolveu, como se a fadiga lhe devorasse o espírito, olhar para o seu interlocutor. Que diabos aquele executivo fazia ali trocando idéias com ele.

- Eu não vivi. Passei minha vida em um estado suspenso de emoções, senhor. Agora quero fazer alguma coisa, qualquer coisa!

O velho grunhiu.

- Eu não viajei, eu não conheci mulheres, eu não tive família nem filhos! - Jorge Luis Braga enumerava para si mesmo, sob olhares impassíveis e sabiamente indiferentes do velho - eu não me diverti!

- A última vez que me lembro de diversão foi quando fui obrigado a cuidar do filho de minha gerente. Ela deixou o guri comigo e disse para levá-lo ao parque de diversões. Eu era funcionário novo, tinha dois meses na função. Não reclamei, levei, e pensando bem, foi a última vez que eu me diverti em 15 anos. Vamos ao parque senhor. Eu sou rico. Eu tenho dinheiro. Tenho dinheiro e nem sei pra que, o que fazer com ele. Vamos ao parque.

Do fundo, do âmago do velho, após muita elucubração, veio sua resposta curta, grossa e óbvia.

-Filho, você está encachaçado?

Continua.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A Objetividade da Inocência

por Victo José da Silva Neto

Segunda, 25 de Janeiro de 2010. Aniversário da cidade de São Paulo. Estive em cumbica há pouco. Na volta, peguei o ônibus cumbica-tatuapé, e fui presenteado com um diálogo no assento atrás do meu, de uma família que havia, deduzo, acabado de receber os filhos de volta de uma viagem ao Nordeste, provavelmente familiares, pois o sotaque daquela região soava forte na conversação.
Os dois eram pequenos, um com 7(menor) outro com 9(maior), mais ou menos. Não pude conter algumas risadas de vez em quando, tamanha a eloquencia infantil que encontrei nos pequenos. O pai pouco falou, mas a mãe, interessada na viagem dos filhos, não os deixava tirar uma soneca após "três horas e vinte e cinco minutos de viagem do Recife para cá" segundo o maior. Deixo aqui algumas das anotações mentais que consigui "pescar":


- (maior) mãe, agente foi na praia todos os dias, eu nadei mas só no rasinho, porque lá no Recife é perigoso, tem tubarão.
- (menor) eu fiquei com medo depois que eu vi um tubarão assim pertinho assim do meu pé mãe, eu vi umas coisa dele assim saindo pra fora da agua.
- (mãe) voces comeram direito?
-( maior) comemo, tinha de tudo no café da manhã, fruta, suco. o tio alugo um carro e agente ia pras praias que eram muito longe, mas tinha que devolver o carro na quinta. ele disse "ces vão ve, amanhã vai faze um sol". Fez um sol danado, dito e feito.
-(menor) ele disse e voce fez?

-(mae) acho que peguei o menino errado, esse aqui ta muito preto! ce uso protetor?
-(maior) eu nao, o protetor era do (nome de um rapaz, nao pude ouvir) e eu não quis usar, muito caro aquilo, dai ia acabando assim...
-(mae) ces viram as maria farinha? aqueles sirizinhos brancos pequenininhos?
-(maior) vimo, eu peguei ela assim pela pata, mas dai ela começo a me da uns belisco assim com a otra e eu logo soltei. tinha uns grandão assim tamem que vinha na carrera e agente ficava com medo.

-(menor) a mãe arranjo emprego!
-(maior) eu sei
-(mae) ces vao ter que ficar na casa da vó por uns dias.
-(maior) mas lá nois fica muito preso, aquele videogame lá, a tia fica inventando historia.
-(mae) mas é o melhor pra nós, voces vão ficar lá. quando voltarem as aulas eu vou poder leva voces pra escola todo dia e i trabalha depois.
*silêncio de resignação*
-(maior) eu não queria fica na casa da vó...
-(menor) eu não queria crescer!

-(mae) ces nao viram a (nome do cachorro- nao pude ouvir) depois que ela voltou do veterinário! tá com brinco e piercing!
-(menor) eu quero ver!
-(maior) lá na praia tudo que era menina tinha piercing, eu que nunca vo colocar uma coisa medonha dessas
-(mae) mas menina é menina né
-(menor) eu queria te uma menina irmãzinha assim, daí era três, dois grande e uma pequena
-(maior) e quando eu fosse adulto ela era adolescente assim.. e eu não ia dexa os menino nem chega perto dela

-(mae) temo que chega logo, preciso ir começar a trabalhar já hoje.
-(maior) ooshh mãe, ce disse que ia fica o dia todo com nois
-(menor) dexa a mãe
-(mae) se eu disse isso falei errado filho, mas graças a deus já vou começar, amanha ja tem vale-refeiçao. vo te seguro saude...
-(maior) ve se tira 50 reais pra nois i passea no shopping, pega uma sessao de cinema
-(mae) sossega minino, mas tomara que de pra gente sai um final de semana por mes...agora descansa que ces tao com os zóio arriado.

Com certeza, se a definição de familia é diálogo, compreensão e união, presenciei um modelo ideal. São Paulo merece, em seu aniversário, histórias como essa - de uma das milhões de famílias que fazem essa metrópole ser, graças ao seu povo, insuperavelmente apaixonante.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Os Dilemas da Intervenção Humanitária

por Victo José da Silva Neto

Para o pesar de todos que acreditam nos ideais encampados pelas Nações Unidas, de hoje em diante será sentida grande ausência de um ícone das missões de paz da organização. Luiz Carlos Costa, o chefe adjunto civil da missão de paz da ONU no Haiti faleceu, vítima do terremoto que atingiu a Ilha Hispaniola. Outros grandes profissionais que dedicaram suas vidas a construção de um mundo em que a comunicação e o auxílio se sobrepõem aos interesses estratégicos nacionais também faleceram. Segundo a ONU, até agora 34 funcionários da MINUSTAH já foram encontrados sob os escombros do que restou da sede da organização em Porto Príncipe.
Impossível não se lembrar de 2003, quando fatidicamente perdemos Sérgio Vieira de Mello, então chefe da missão da ONU no Iraque, sob ocupação da Coalizão. Outra vida dedicada à manutenção de conflitos, ao resgate em calamidades, um esforço no sentido de construir-se um mundo de cooperação. Ambos eram pessoas extremamente capacitadas, com larga experiência em campo, coordenando variáveis políticas a fim de extrair os melhores resultados para aqueles que, na maioria dos casos, pouco ou nada sabem da participação ativa das Nações Unidas e do seu esforço para com a causa.
A organização muitas vezes recebeu o ônus dos fracassos que foram, em realidade, produzidos pela negligência ou inação dos países membros e do conselho de segurança, mas nunca negou um pedido de socorro, uma intervenção que fosse provada necessária. Defendo este princípio das Nações Unidas. Concordo com o que Sérgio chamava de "Imperativo Humanitário", lastreado no pensamento kantiano. Entretanto, ao ver confirmada a segunda grande perda de um brasileiro eminente na organização, em pleno exercício da profissão, me coloquei a pergunta: a ONU é negligente com seu próprio pessoal?
Depois de tantas baixas, (os brasileiros foram só o chamariz) se apresenta um quadro que, em linhas gerais, parece denunciar o descaso da organização no que concerne a segurança de seus funcionários. Samanta Power denuncia, na biografia de Vieira de Mello, como os integrantes do quadro da ONU no Iraque tinham a certeza de que sofreriam um ataque da população enfurecida com a ocupação estrangeira - a única dúvida era o quando.
Em março de 2008, na 18ª Conferência Geológica do Caribe, um grupo de cinco sismologistas havia afirmado que havia um "grande risco sísmico" na falha ao sul da ilha Hispaniola. Como de costume, as vozes científicas foram suplantadas por "imperativos políticos" que assomam nas complexas relações internacionais coalhadas de interesses de múltiplos atores.
A ONU deveria tomar medidas extras de precaução com seus funcionários? Afinal, um grupo tão qualificado como os empregados pela organização, que tem o engajamento e a dedicação, sem falar na experiência e na habilidade nata de negociadores e logísticos, deve ser protegido como o grande asset da "corporação ONU". Seu quadro de funcionários é seu principal capital. Sem os homens que se dispõe a contradizer a lógica materialista e imediatista dos estados-nação, a organização não é mais que um prédio onde se produzem reuniões dominadas pela burocracia contaminadas por representantes especiais dos países mais "influentes".
Como, entretanto, a ONU poderia instalar seu pessoal no Haiti, de forma segura, sem causar um contraste no mínimo incômodo com as instalações da população miserável? Como garantir a segurança de seus membros, fornecendo instalações confortáveis e a prova de riscos que já foram provados pela ciência, e deixar todos os habitantes locais a mercê da menor fatalidade? Ao se colocar na mesma situação de risco, a ONU ganha legitimidade, pois não se comporta como países ocupantes, nem utiliza uma posição superior arrogante ou simplesmente mais poderosa e rica do que os que pretende ajudar.
Como então?