quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

É...

Jorge Luis Braga era supervisor nacional da Timpu adornos metálicos, grande multinacional mexicana do ramo dos utensílios domésticos. Sua sólida carreira remetia há 15 anos, quando havia entrado na empresa graças ao padrasto de seu primo, homem de vida misteriosa, mas que havia lhe indicado para uma vaga de administrativo. Depois de trabalhar por um ano no almoxarifado, foi promovido a consultor de vendas. Dada sua ânsia pelo trabalho, sua compulsividade em se mostrar excessivamente como o melhor e mais empenhado, conseguiu, um pouco por mérito um pouco por exaustão, galgar a cada dois ou três anos uma promoção.
No meio tempo, Jorge Luis Braga se esqueceu de viver. Logo que pôde, se mudou da casa dos pais e comprou um pequeno apartamento na Casa Verde. Lá, entre vizinhos mal-encarados e engarrafamentos a cada dia mais desafiadores, ficou por pouco mais de quatro meses. O local não tinha grandes atrativos, e o deslumbramento que o dinheiro causou ao pobre Jorge Luis Braga o impedia de viver um padrão regular de vida, na média dos seus rendimentos. Endividou-se, trocou financiamentos por carros, hipotecou apostas e apostou suas hipotecas. Seus pais ajudaram. Conseguiu equilibrar suas contas. Namorou por três meses com uma garota que trabalhava no Pari, eles haviam se conhecido na sala de espera de um analista. Sim, porque ele fazia análise, obrigado pelos pais que não se conformavam com sua falta de vida social e sua aparente indiferença quanto à relacionamentos estáveis. A salvação monetária de suas dívidas teve como contrapartida a freqüência no consultório. Essa situação durou pouco tempo, e Jorge Luis Braga percebeu que não havia nada de errado com ele. Diferente dos outros, ele entendera e assimilara a lógica do mundo de modo a aperfeiçoar seu tempo, suas relações, suas conversas e o tempo de suas refeições. Não fazia nada de improviso. Tinha o dia programado ao desvelar do lençol pela manhã.
O namoro foi um desvio que ele mais tarde viu como uma sub-optimização de seus recursos, uma capacidade produtiva ociosa de seu corpo, seu templo, seu tempo. Para recuperar o irrecuperável, lançou-se a uma cruzada impiedosa, jurando que se tornaria muito, muito rico. Depois de alguns anos, trabalhando sem tirar férias, assessorado por alguns dos melhores corretores financeiros da cidade de São Paulo, ele conseguiu. Tinha acumulado um grande capital, e reaplicava em títulos e fundos de rendimento seguro e estável. Aversão ao risco? Jorge Luis Braga não mencionava a palavra risco. Afinal, quem tem a vida planejada está imune ao mesmo?

O pai de Jorge morreu. O estalo mental agiu rápido. Olhou-se no espelho emoldurado por lindos ornatos metálicos comprados a preços especiais da Timpu adornos metálicos, e viu sua figura, lamentável lamentável, tinha chegado do enterro de seu pai, que tinha sido no cemitério do Araçá, cujo túmulo havia custado mais dinheiro do que cabia na sua carteira mas haveria de valer a pena.

Não tinha mais tempo a perder. No dia seguinte, em plena segunda-feira, tirou seu carro da garagem, um belo esportivo preto comprado em uma ampla loja no jardim paulista, desligou seu blackberry mas, maquinalmente, desceu de terno. Seu cabelo ralo espetado parecia uma pequena árvore de natal artificial maltratada, se bem que era preto, e não verde. Ele percebeu que estava mal arrumado, amofinado, mas aquilo lhe encheu de uma alegria, uma excitação, um tesão que não encontrava precedentes em sua memória. Não tinha idéia do que fazer, e isso lhe deixava irracional ao ponto de ignorar regras básicas da vida em comunidade. Não vou continuar descrevendo todas as imbecilidades que Jorge Luis Braga cometeu no seu momento de epifania; vou, portanto, logo à parte mais interessante da história, exatamente ao ponto no qual outro personagem aparece.

Jorge dirigiu sem rumo até uma praça dentre as mil praças da cidade e parou. Não tinha objetivo. Parou o carro e desceu. Não trancou. Andou até o centro da praça. Olhou para o alto e viu o Sol [o Sol de São Paulo, não sei se vocês sabem, já as sete horas da manhã se parece com o Sol do litoral à pino, te queima o rosto]. Pessoas cotidianas andavam pela praça. Não tinha vento. Havia um bar. Sempre há um bar. Nos bancos, pessoas sentadas. Em um deles, um velhinho com o cabelo desgrenhado, branquíssimo e ralo no cocuruto, escorando uma caixa (com a enorme pança) que continha diversos tipos de balas, chicletes, doces, cigarrinhos de chocolate e até mesmo pãezinhos de mel. O velho era feio. Jorge Luis reparou nisso, e como agia naquele momento no avesso do que considerava normal, sentou-se ao lado do ancião e disse que ele comeria um pão de mel. O velho lhe vendeu. Disse não saber o que estava fazendo ali, e o velho resolveu, como se a fadiga lhe devorasse o espírito, olhar para o seu interlocutor. Que diabos aquele executivo fazia ali trocando idéias com ele.

- Eu não vivi. Passei minha vida em um estado suspenso de emoções, senhor. Agora quero fazer alguma coisa, qualquer coisa!

O velho grunhiu.

- Eu não viajei, eu não conheci mulheres, eu não tive família nem filhos! - Jorge Luis Braga enumerava para si mesmo, sob olhares impassíveis e sabiamente indiferentes do velho - eu não me diverti!

- A última vez que me lembro de diversão foi quando fui obrigado a cuidar do filho de minha gerente. Ela deixou o guri comigo e disse para levá-lo ao parque de diversões. Eu era funcionário novo, tinha dois meses na função. Não reclamei, levei, e pensando bem, foi a última vez que eu me diverti em 15 anos. Vamos ao parque senhor. Eu sou rico. Eu tenho dinheiro. Tenho dinheiro e nem sei pra que, o que fazer com ele. Vamos ao parque.

Do fundo, do âmago do velho, após muita elucubração, veio sua resposta curta, grossa e óbvia.

-Filho, você está encachaçado?

Continua.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A Objetividade da Inocência

por Victo José da Silva Neto

Segunda, 25 de Janeiro de 2010. Aniversário da cidade de São Paulo. Estive em cumbica há pouco. Na volta, peguei o ônibus cumbica-tatuapé, e fui presenteado com um diálogo no assento atrás do meu, de uma família que havia, deduzo, acabado de receber os filhos de volta de uma viagem ao Nordeste, provavelmente familiares, pois o sotaque daquela região soava forte na conversação.
Os dois eram pequenos, um com 7(menor) outro com 9(maior), mais ou menos. Não pude conter algumas risadas de vez em quando, tamanha a eloquencia infantil que encontrei nos pequenos. O pai pouco falou, mas a mãe, interessada na viagem dos filhos, não os deixava tirar uma soneca após "três horas e vinte e cinco minutos de viagem do Recife para cá" segundo o maior. Deixo aqui algumas das anotações mentais que consigui "pescar":


- (maior) mãe, agente foi na praia todos os dias, eu nadei mas só no rasinho, porque lá no Recife é perigoso, tem tubarão.
- (menor) eu fiquei com medo depois que eu vi um tubarão assim pertinho assim do meu pé mãe, eu vi umas coisa dele assim saindo pra fora da agua.
- (mãe) voces comeram direito?
-( maior) comemo, tinha de tudo no café da manhã, fruta, suco. o tio alugo um carro e agente ia pras praias que eram muito longe, mas tinha que devolver o carro na quinta. ele disse "ces vão ve, amanhã vai faze um sol". Fez um sol danado, dito e feito.
-(menor) ele disse e voce fez?

-(mae) acho que peguei o menino errado, esse aqui ta muito preto! ce uso protetor?
-(maior) eu nao, o protetor era do (nome de um rapaz, nao pude ouvir) e eu não quis usar, muito caro aquilo, dai ia acabando assim...
-(mae) ces viram as maria farinha? aqueles sirizinhos brancos pequenininhos?
-(maior) vimo, eu peguei ela assim pela pata, mas dai ela começo a me da uns belisco assim com a otra e eu logo soltei. tinha uns grandão assim tamem que vinha na carrera e agente ficava com medo.

-(menor) a mãe arranjo emprego!
-(maior) eu sei
-(mae) ces vao ter que ficar na casa da vó por uns dias.
-(maior) mas lá nois fica muito preso, aquele videogame lá, a tia fica inventando historia.
-(mae) mas é o melhor pra nós, voces vão ficar lá. quando voltarem as aulas eu vou poder leva voces pra escola todo dia e i trabalha depois.
*silêncio de resignação*
-(maior) eu não queria fica na casa da vó...
-(menor) eu não queria crescer!

-(mae) ces nao viram a (nome do cachorro- nao pude ouvir) depois que ela voltou do veterinário! tá com brinco e piercing!
-(menor) eu quero ver!
-(maior) lá na praia tudo que era menina tinha piercing, eu que nunca vo colocar uma coisa medonha dessas
-(mae) mas menina é menina né
-(menor) eu queria te uma menina irmãzinha assim, daí era três, dois grande e uma pequena
-(maior) e quando eu fosse adulto ela era adolescente assim.. e eu não ia dexa os menino nem chega perto dela

-(mae) temo que chega logo, preciso ir começar a trabalhar já hoje.
-(maior) ooshh mãe, ce disse que ia fica o dia todo com nois
-(menor) dexa a mãe
-(mae) se eu disse isso falei errado filho, mas graças a deus já vou começar, amanha ja tem vale-refeiçao. vo te seguro saude...
-(maior) ve se tira 50 reais pra nois i passea no shopping, pega uma sessao de cinema
-(mae) sossega minino, mas tomara que de pra gente sai um final de semana por mes...agora descansa que ces tao com os zóio arriado.

Com certeza, se a definição de familia é diálogo, compreensão e união, presenciei um modelo ideal. São Paulo merece, em seu aniversário, histórias como essa - de uma das milhões de famílias que fazem essa metrópole ser, graças ao seu povo, insuperavelmente apaixonante.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Os Dilemas da Intervenção Humanitária

por Victo José da Silva Neto

Para o pesar de todos que acreditam nos ideais encampados pelas Nações Unidas, de hoje em diante será sentida grande ausência de um ícone das missões de paz da organização. Luiz Carlos Costa, o chefe adjunto civil da missão de paz da ONU no Haiti faleceu, vítima do terremoto que atingiu a Ilha Hispaniola. Outros grandes profissionais que dedicaram suas vidas a construção de um mundo em que a comunicação e o auxílio se sobrepõem aos interesses estratégicos nacionais também faleceram. Segundo a ONU, até agora 34 funcionários da MINUSTAH já foram encontrados sob os escombros do que restou da sede da organização em Porto Príncipe.
Impossível não se lembrar de 2003, quando fatidicamente perdemos Sérgio Vieira de Mello, então chefe da missão da ONU no Iraque, sob ocupação da Coalizão. Outra vida dedicada à manutenção de conflitos, ao resgate em calamidades, um esforço no sentido de construir-se um mundo de cooperação. Ambos eram pessoas extremamente capacitadas, com larga experiência em campo, coordenando variáveis políticas a fim de extrair os melhores resultados para aqueles que, na maioria dos casos, pouco ou nada sabem da participação ativa das Nações Unidas e do seu esforço para com a causa.
A organização muitas vezes recebeu o ônus dos fracassos que foram, em realidade, produzidos pela negligência ou inação dos países membros e do conselho de segurança, mas nunca negou um pedido de socorro, uma intervenção que fosse provada necessária. Defendo este princípio das Nações Unidas. Concordo com o que Sérgio chamava de "Imperativo Humanitário", lastreado no pensamento kantiano. Entretanto, ao ver confirmada a segunda grande perda de um brasileiro eminente na organização, em pleno exercício da profissão, me coloquei a pergunta: a ONU é negligente com seu próprio pessoal?
Depois de tantas baixas, (os brasileiros foram só o chamariz) se apresenta um quadro que, em linhas gerais, parece denunciar o descaso da organização no que concerne a segurança de seus funcionários. Samanta Power denuncia, na biografia de Vieira de Mello, como os integrantes do quadro da ONU no Iraque tinham a certeza de que sofreriam um ataque da população enfurecida com a ocupação estrangeira - a única dúvida era o quando.
Em março de 2008, na 18ª Conferência Geológica do Caribe, um grupo de cinco sismologistas havia afirmado que havia um "grande risco sísmico" na falha ao sul da ilha Hispaniola. Como de costume, as vozes científicas foram suplantadas por "imperativos políticos" que assomam nas complexas relações internacionais coalhadas de interesses de múltiplos atores.
A ONU deveria tomar medidas extras de precaução com seus funcionários? Afinal, um grupo tão qualificado como os empregados pela organização, que tem o engajamento e a dedicação, sem falar na experiência e na habilidade nata de negociadores e logísticos, deve ser protegido como o grande asset da "corporação ONU". Seu quadro de funcionários é seu principal capital. Sem os homens que se dispõe a contradizer a lógica materialista e imediatista dos estados-nação, a organização não é mais que um prédio onde se produzem reuniões dominadas pela burocracia contaminadas por representantes especiais dos países mais "influentes".
Como, entretanto, a ONU poderia instalar seu pessoal no Haiti, de forma segura, sem causar um contraste no mínimo incômodo com as instalações da população miserável? Como garantir a segurança de seus membros, fornecendo instalações confortáveis e a prova de riscos que já foram provados pela ciência, e deixar todos os habitantes locais a mercê da menor fatalidade? Ao se colocar na mesma situação de risco, a ONU ganha legitimidade, pois não se comporta como países ocupantes, nem utiliza uma posição superior arrogante ou simplesmente mais poderosa e rica do que os que pretende ajudar.
Como então?